quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Curtas 1

Por Rafael Carvalho

Na seção “Curtas 1” do FIC, nota-se a qualidade da produção brasileira nitidamente. Além de ótimos roteiros, escolha de trilhas sonoras tocantes, preocupação com fotografia, cores, luz, enquadramentos e composição das imagens, nos permite as mais variadas sensações e experiências.

Os curtas exibidos nos permitem jogar com nossos valores éticos, pensar o que faríamos em tais situações. Nos prendem de tal modo as histórias que, ao término da seção de quatro curtas, fica um gostinho de quero mais.

A seção “Curtas 1” tem duração de 64 min, é composta por quatro curtas-metragens: Até Quando, O Despejo ou... Memórias de um Gabiru, Outono e Relicário.


ATÉ QUANDO ****
Um curta instigante no que se refere ao roteiro, e lindo no que se refere à estética.

É um filme que mostra até quando o amor paterno e a ética podem se entender. Com direção de Gustavo Moraes, o curta é nacional, tem duração de 17 min, em cores, e é uma ficção.

A história gira em torno da experiência de dois garotos. Pedro e Eduardo (Duda) sofrem de problemas renais, se conhecem numa clínica de hemodiálise e tornam-se amigos.

Pedro é filho de Edgar, empresário de pequeno porte que não suporta ver seu filho em uma situação tão frágil, literalmente não agüenta vê-lo fazendo uma seção de hemodiálise, em certo trecho chega a vomitar quando vai acompanhar seu filho à clínica. Edgar procura vários meios para livrar seu filho da situação, até mesmo ser antiético. Pedro tem uma mãe carinhosa, justa e disposta a esperar o tempo necessário para que seu filho se cure, em certos momentos tem debates sobre ética com seu esposo. Nestes diálogos nós mesmos acabamos pensando nos nossos valores éticos, o que fazer em tal situação.

Eduardo é filho de um gari de praia, viúvo, pobre que cuida de seus filhos sozinhos, é muito ético e liga muito para o futuro de seu filho. É capaz de tudo para garantir coisas boas ao garoto, até mesmo adiar a sua cura.

Após os garotos se tornarem amigos, as duas famílias se relacionam. Edgar e o pai de Duda criam vínculos e em um diálogo que ocorre simultaneamente com o início da história, em uma amarração de falas e acontecimentos quase que auto-explicativos, que apresentam toda a situação. Com cortes de flashbacks de conversas entre Edgar e sua esposa, os garotos na clínica, e dos pais e os garotos na praia, se apresenta o clímax da história.

Os dois meninos eram compatíveis e esperavam a doação de um rim. O pai de Duda é compatível com os dois e iria doar um de seus rins a seu filho, mas Edgar, pensando em Pedro, faz uma proposta ao homem, que lhe vendesse o órgão que seria doado a Duda para Pedro, visando livrá-lo da hemodiálise. O pai de Dudu aceita, mas com a condição de que Edgar garantisse uma boa educação a Duda.

Infelizmente, apesar dos esforços de Edgar, Pedro morre após a doação com complicações de rejeição pós-operatório.

O filme possui uma estética impecável na fotografia, com enquadramentos fantásticos no litoral, na cozinha durante o preparo do caranguejo, no movimento dos caranguejos na panela e no mangue e, principalmente, na clínica, mostrando contrastes de vermelho e branco, e mostrando sempre a relação das pessoas com os aparelhos de hemodiálise.

A música tema que embala o curta é “Melhor que Você – Moreno Veloso”, e explica bem a conduta do personagem Edgar.

O curta realmente mexe com nosso imaginário de maneira incrível, ficamos pensando o que faríamos na situação, balança com nossos valores éticos, pessoais e até quando nossa moral se relaciona com sentimentos primários como o amor pelo filho, qual o limite? Até onde vamos em defesa de um ente querido?
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O DESPEJO OU... Memórias de Gabiru **
O curta trata-se de um drama com duração de sete minutos, é uma animação em cores com direção de Sérgio Glenes. Conta a história de Seu Narciso que em certa manhã ensolarada recebe a visita de um oficial de justiça.

Seu Narciso é um senhor que mora na favela, lugar onde ele nasceu, cresceu e envelheceu. Numa certa manhã um oficial de justiça sobe o morro da favela com mandatos de despejo de uma grande área da favela.

No momento, seu narciso se vê obrigado a abandonar o local e lembra-se de momentos na infância, lembra dos conflitos que ele já passou no local, lembra de sua mãe que o levava à escola e de várias outras coisas que o prendiam ao local.

O curta-metragem segue como roteiro uma bela música, “Desejo da Favela - Adoniran Barbosa”, por Edson Cordeiro. Conta com uma bela arte em suas animações. Faz uma construção interessante dos elementos da favela, os policiais subindo o morro, os traficantes (suponho) saindo dos becos das casas, o morro repleto de barracos.

É uma linda animação que nos permite pensar nas coisas e pessoas que valorizamos em nossas vidas.


OUTONO ***

Um errante invade uma casa e o proprietário chega pouco após. O invasor esconde-se e torna-se imperceptível ao dono da casa, porém o observa em sua rotina. O curta tem duração de 22 min e é um drama em cores. Pablo Lobato dirige o curta.

Utilizando um esconderijo no banheiro, um errante observa toda a rotina de um homem em sua casa. O homem só passa as noites em sua residência, logo, nós também observamos a rotina do invasor na casa, todos condicionados no mesmo espaço e tempo, até pareciam revezar as atividades, como ir ao banheiro, dormir e outras cotidianas.

O dono da casa parecia uma pessoa muito triste e solitária. Inclusive o filme quase todo me remeteu à solidão. No início, o errante na rua desacompanhado, depois na casa do homem, o homem que em nenhum momento aparenta ter algum afeto, a companhia que tem é o errante em sua casa, mas ele se quer nota que alguém esteve na sua casa, comeu da sua comida, molhou seu banheiro, etc.. A única aparição de algo parecido com um afeto deste homem é de uma mulher, que parecia ter saído de casa por algum momento e demonstrava certo carinho pelo homem.

O errante demonstra valores que o homem não tem, molha as plantas, banha, lava suas roupas, escuta cada som dentro de casa. Em certo momento, em um jarro com água põe duas folhas, uma seca e outra verde e liga a torneira. A água da torneira, causando empuxo na água da jarra, fazia com que as folhas subissem, para sair do jarro junto com as águas que derramavam, mas a força da água que entrava as forçavam a ficar no jarro, criando uma rotina monótona. Analogia aos dois que ficavam naquela rotina a mercê dos fatos.

Em alguns momentos se espera que ou o errante ataque o homem ou o homem descubra o errante. Mas, na verdade, fica nesse jogo de o errante se esconder e o homem sequer notar que ele esta lá.

A fotografia do curta está de parabéns, com belos recortes de detalhes da casa, em mostrar a relação dos homens com aquele ambiente, o uso das cores e iluminações dava certo valor imaginário às cenas.

O filme é instigante e todo tempo se aguarda uma reviravolta na história. O clima tenso e meio cômico que algumas cenas nos remetem, nos levam a pensar em “n” situações e possibilidades de acontecimentos que poderiam ocorrer naqueles momentos, mas ao fim nada acontece, exceto voltar para um mesmo ponto da rotina, da solidão.


RELICÁRIO *****

É inteligente, discute a vida e a morte do ponto de vista de alguém que está prestes a morrer.

Relicário conta a história de um jovem de 20 anos que, doente, prestes a morrer, se vê em uma viagem subjetiva entre suas memórias, alucinações e relíquias de sua vida. O curta-metragem tem duração de 18 minutos e é um drama em cores. O Diretor é Rafael Gomes, mesmo diretor de “Tapa na Pantera”, curta de aproximadamente três minutos, cômico que foi grande sucesso nos Youtubes da vida por aí.

Rodrigo é um jovem que está doente e, aparentemente internado em uma clínica fechada. No início do filme, acorda meio que perdido e anda pelo espaço. Discos, brinquedos e muitos outros objetos estão espalhados pelo cenário. Neste passeio, Rodrigo encontra um amigo, que toca piano e compôs uma música para ele. No momento, a solidão angustiante que o personagem sente pode ser sentida por nós, aliás, em todo filme. Após a explicação do porquê ele está ali passa essa sensação.

Rodrigo, naquele quarto, estava com tudo que mais valorizou em sua vida - lembranças de viagens, objetos pessoais, músicas. Aos poucos, coisas que ele não parecia dar tanto valor também apareciam e se mostravam expressivas, como um boneco que brincava muito quando era criança; a música predileta que ele nunca conseguia lembrar; a avó dando um casaco para ele, simbolizando o carinho; os cuidados de um com o outro. São diálogos muito tocantes os que Rodrigo tem com seu amigo, com o médico, com a avó e com sua namorada.

O rapaz descrente em tudo que um dia havia acreditado - Deus, amor, felicidade, na própria vida e em qualquer relação - se viu só em seu momento de morte.

O filme é lindo, tanto os diálogos, quanto na estética, o drama se move em ritmo muito pessoal e realista, apesar da subjetividade. Mostra que para se morrer basta estar vivo, não por questão de idade, classe, ou desejos que irá ou não se salvar. Também não descrendo em um Deus, que sempre houve crença que alguma situação mudará. Os cenários passam um lirismo que liga as lembranças de Rodrigo às nossas próprias lembranças.

É um curta aconselhável. E digno de ser visto e revisto várias vezes.
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Imagens: Divulgação

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